terça-feira, janeiro 16, 2007

o porquê da crispação

As comemorações do 13 de Janeiro mostraram que duas ideias de Liberdade e de Democracia ainda se chocam em Cabo Verde. Na Constituição, Liberdade resulta do princípio do respeito pela dignidade humana. O indivíduo aparece como sujeito com direito a procurar a sua felicidade. A Democracia é consequência da consagração da vontade soberana do povo como fundamento da legitimação do exercício do Poder. Da interligação orgânica dessas duas ideias emerge o sistema de direitos, liberdades e garantias e o Estado de Direito democrático O choque verifica-se sempre que a ideia da liberdade, enquanto esfera de defesa do indivíduo contra a intervenção ou a agressão do Poder do Estado, é minimizada e se dá prioridade à satisfação das necessidades básicas. É o que se extrai do discurso do Presidente da Câmara da Praia no dia 13 de Janeiro : “nós temos um sentido claro da democracia e da liberdade, que não é só falar, fazer comícios, não é só vibrar no Parlamento, mas é sobretudo trabalhar para levar a felicidade a cada um e a cada família cabo-verdiana”. O raciocínio dele não é novo. Foi feito ao longo de décadas por comunistas quando confrontados com a falta de liberdade e democracia nos seus países. E também é falso. A História demonstrou que não se troca Liberdade por felicidade. Os caboverdianos viveram, durante as décadas do salazarismo e os 15 anos do partido único, sob versões dessa ideia que atropela a dignidade das pessoas, que sacrifica as liberdades individuais em nome do Estado e que vê o homem não como sujeito mas sim como objecto dos poderes. E sofreram as consequências. Não é admissível que as autoridades usem as suas prerrogativas para insistirem com ideias que contrariem frontalmente os princípios e valores constitucionais. Também não é admissível que o Primeiro-Ministro se aproveite da data do 13 de Janeiro para atacar a Democracia. Aparentemente a despropósito, o PM, na sequência do discurso do Presidente da Câmara, apontou situações de violação de direitos que se teriam verificado há dez ou mais anos atrás na vigência do regime democrático. Chegou mesmo ao ponto de se apresentar pessoalmente como vítima. As denúncias extemporâneas do PM só se compreendem se o objectivo for demonstrar às pessoas que não é o sistema democrático, com o seu leque de direitos fundamentais, a independência dos tribunais e a exigência da conformidade da acção do Estado à Constituição e à Lei, que se constitui como garantia contra abusos. É como se dissesse: Os abusos aconteceram na vigência do MpD. Não agora com o PAICV. Portanto, a garantia real não é dada pela Constituição, nem pelas instituições, mas sim por quem está no Poder. O erro do PM é comum entre os que ainda não se libertaram da cultura revolucionária e da ideia de que há alguns na sociedade, e só eles, que representam os reais interesses do povo.   Democracia não significa a impossibilidade de abusos. A diferença em relação a regimes tirânicos é o direito de recurso a instrumentos, designadamente políticos e jurídicos, para conter e bloquear usos indevidos do Poder e para exigir reparação de excessos cometidos.  Face a isto, ainda há quem se interroga porque persiste a crispação política em Cabo Verde? Um grande ausente das comemorações nacionais do Dia da Liberdade e da Democracia foi o Presidente da República. Reapareceu no dia seguinte nas chamadas comemorações do 40º aniversário das Forças Armadas. Uma comemoração que não serve a República, que coloca as Forças Armadas fora da ordem constitucional e que só serve quem insiste em manter o país refém do passado, sem olhar a custos.

sexta-feira, janeiro 12, 2007

Desmame necessário

No discurso de apresentação de cumprimentos ao PR, o Primeiro-Ministro afirmou que 2007 é o ano charneira: A partir de 2008, Cabo Verde vai deixar de pertencer ao grupo dos países menos desenvolvidos (PMAs). O PM podia ser mais preciso e dizer que, em 2003, constatou-se oficialmente que os indicadores sócio-económicos de Cabo Verde, designadamente o PIB per capita, já não o qualificavam como PMA mas sim como País de Desenvolvimento Médio (PDM). Nestes anos, Cabo Verde tem vivido um período de transição, que termina em 2008, durante o qual vem beneficiando, ainda como um PMA, da bonança em doações e créditos concessionais. A questão é o que fazer a partir de agora. O PM, no seu discurso, salta logo à frente e chama à responsabilidade os empresários e os cidadãos. O País, porém, gostaria de saber o que é o Governo fez para que a aterragem na nova condição seja suave, uma soft landing. Se conseguiu travar o crescimento das despesas de funcionamento a favor do reforço da participação nacional no orçamento de investimento? Se fez as reformas do Estado necessárias para conter o peso do Estado na economia nacional? Se mudou a cultura de funcionamento da Administração Pública para ser mais eficiente na oferta de serviços públicos, mais facilitador na relação com os utentes e mais competente como regulador? Se a Administração está mais profissional e menos partidária? Se a relação do Estado com os cidadãos não está a ser gravemente afectada pelo partidarismo visível no alargamento de redes patrimonialistas e clientelistas por todos os cantos do país? O PM diz que a ajuda externa cria uma cultura de dependência nos cidadãos e nos empresários. É verdade. Mas o pior é o efeito que tem sobre quem localmente gere a ajuda: o Estado. O Estado decide quem recebe, faz entregas, controla fluxos. O Poder que daí advém tem um reflexo em termos de postura, de atitude. Certamente que não é uma cultura de servir que emerge da gestão monopolística de recursos em ambiente de escassez. É uma cultura de arrogância, de controlo e de desperdício. Uma cultura que gera formas de fazer política que visam enredar as pessoas em favores, compensar ou punir segundo conveniências partidárias e esquivar-se a qualquer forma de responsabilização exterior e de accountability. Mexer na parte da equação que diz respeito ao Estado não é tarefa fácil, como José Sócrates está a descobrir em Portugal. Mas é essencial. Sem isso não há aumento de produtividade, a economia não ganha competitividade e, dificilmente, os empresários passam a ser empreendedores. O País está atrasado de vários anos em enfrentar esta desafio. Em Portugal é consenso geral que o Estado terá que se renovar para que haja crescimento económico e emprego. Essa consciência ainda não existe em Cabo Verde. Continua-se intoxicado pela ajuda e pelo Poder que dá sobre as pessoas, a sociedade e o país. O desmame virá. 

quinta-feira, janeiro 11, 2007

Voluntarismo na República

Mário Soares inventou as presidências abertas num quadro da coabitação com duas maiorias absolutas do PSD para exercer a sua magistratura de influência. Através delas dava voz à população e a diferentes sectores da sociedade. E o Governo desgastava-se. Pedro Pires já lançou as suas presidências abertas. Não explica é porquê e para quê. Não será pelas mesmas razões do Mário Soares. Em Dezembro, visitou o Supremo Tribunal, o Tribunal de Contas e a Procuradoria Geral. Parece que o tema era Justiça. Não se sabe, porém, se o PR vai ouvir somente os titulares dos órgãos ou se vai abrir o leque para escutar outras entidades activas no sector, profissionais, académicos e utentes em geral. Visitou a Polícia Nacional depois de ser sido recebido pelo Ministro. Como dificilmente podia deixar de ser, confinou-se, nas suas declarações, ao papel de concordar com o Governo no tocante à unificação das polícias numa Polícia Nacional e fazer eco desse discurso, muitas vezes usado pelas autoridade para se desresponsabilizarem-se, de que somos todos responsáveis pela segurança. Ontem o “asemanaonline” noticiou a sua intenção de visitar o Palácio das Comunidades, a sede do Ministério dos Negócios Estrangeiros. O jornal acrescenta que já nessa perspectiva os diplomatas vão querer ouvir a opinião do PR sobre vários dossiers: imigração, relações com a União Europeia, CEDEAO. Ventila-se também a possibilidade, durante a visita, de se retomar a questão do estatuto dos diplomatas que fora vetado na legislatura passada. Os elementos aberrantes nesta notícia não são poucos: os diplomatas a ouvirem o PR sobre dossiers e a discutir com ele leis ainda por aprovar e vetos políticos passados. Claramente que o PR está a pisar terreno alheio. De facto é ao Governo que, constitucionalmente, compete definir e executar a política interna e externa do País. Mais, a nossa Constituição determina que o Governo só é responsável politicamente perante a Assembleia Nacional (art. 197 n.1). Não o é perante o Presidente da República. Por isso, o PR não tem poderes de fiscalização dos actos do Governo e da Administração Pública. E é ao Primeiro-Ministro, e não aos ministros e muito menos aos funcionários, que cabe informar regular e completamente o PR sobre os assuntos relativos à política interna e externa do Governo (art.206 f)). Não se compreende portanto o protagonismo, aparentemente desajustado, do PR em sectores sob a direcção directa do Governo. Não será para desgastá-lo, certamente. Entretanto, o País continua à espera de acção do PR em matérias que são claramente da sua competência. À espera que seja o moderador do sistema e o defensor da Constituição. Já se sofreu, e muito, com as omissões repetidas do PR, designadamente, em matéria do IVA. Recentemente, durante o debate parlamentar não fez chegar nenhuma mensagem presidencial à A N no sentido do cumprimento da Lei de instalação do TC. Promulgou a Lei do orçamento sem qualquer reparo para a não adjudicação de verbas para o funcionamento do TC. A democracia é subvertida de facto quando titulares de órgãos de soberania entram numa espécie de voluntarismo e fogem às regras. Quando invadem o espaço de outros órgão, negam-se a cumprir as suas competências, omitem-se em momentos cruciais e entram em cooperações estratégicas dúbias que cheiram a violações do princípio constitucional de separação e interdependência de poderes. Alguém já disse que voluntarismo é um dos inimigos do Estado de Direito. 

terça-feira, janeiro 09, 2007

Segurança sim, mas na Lei

A entrevista que o Director da Polícia Nacional deu ao Expresso da Ilhas, na semana passada, suscita algumas questões. A primeira é a questão da cooperação entre a Polícia e outros sectores de Justiça, designadamente os Tribunais e o Ministério Público. Já numa entrevista ao “asemana”, meses atrás, o Ministro da Administração Interna tinha reclamado a falta de cooperação entre as instituições (judiciária e policial) para combater o crime, tendo acrescentado, em tom de crítica ao MP e aos tribunais, que esse combate não se compadecia com questões sebentárias do tempo da universidade. Ao cidadão comum importa sempre que o combate ao crime seja eficaz, mas não a todo o custo. Ninguém fica tranquilo quando ouve o Ministro a referir-se a preocupações com os direitos fundamentais, designadamente o direito à liberdade e os direitos de defesa, consagrados na Constituição, como questões sebentárias. Fica-se a saber pela entrevista do Director da PN que os resultados actuais têm a ver com uma nova cooperação com o MP, envolvendo encontros do próprio com o Procurador-Geral onde ele sugeriu que a Justiça devia agir no seu todo. Ainda na entrevista ele constata que a Justiça respondeu positivamente e que pessoas foram detidas e aguardam julgamento em prisão preventiva. Ora, quem detém é a Polícia, quem move acção penal é o Ministério Público e quem julga são os Tribunais. Sendo a polícia dependente do Governo, o MP autónomo e os juízes independentes não se vê que cooperação pode-se esperar dessas instituições. A defesa comum da Legalidade e dos Direitos dos indivíduos parece ser o único elo aparente de ligação. E isso consegue-se cumprindo as competências próprias, com observância estrita da Constituição e dos procedimentos previstos na Lei. Segunda questão: Num outro ponto da entrevista o Director da PN deixa a impressão que a acção legislativa em relação à Polícia está invertida. Assim, quanto à Lei Orgânica da PN diz que a direcção da PN tem uma proposta zero a circular pelos comandos e que já recebeu inputs de associações sócio-profissionais. Aparentemente, o Governo, em vez de ser o autor material de leis que traduzam as suas políticas, parece contentar-se com receber propostas da Administração que orienta e superintende. Isso é um convite à cristalização de interesses corporativos na Administração Pública, com consequências presentes e futuras na governação do País. Terceira questão: O Director da PN regozija-se com os resultados recentes da acção policial particularmente na Praia. Muito bem. O estranho é a polícia não se ter organizado, até bem pouco tempo, para responder à insegurança crescente. Pedia meios - o orçamento da Polícia aumentou de 800 mil contos para 1 milhão e trezentos mil em dois anos - mas parece que não tinha estratégia, nem planos operacionais. Sem isso dificilmente se pode organizar-se, adequar os meios e agir para responder a chamadas dos cidadãos e dissuadir o crime. Como os piquetes demonstram era um problema clássico de comando, controlo e comunicação. Espera-se que a Polícia continue a rever os seus métodos e, sempre no quadro da legalidade,  aja de forma estratégica para prevenir e combater o crime. Particularmente espera-se que tenha presente experiências de sucesso noutros sítios, designadamente as de tolerância zero, suportadas no princípio de no broken windows. De facto a população das ilhas e os turistas agradecem se a polícia tornar-se mais proactiva na prevenção e evitar situações, designadamente de venda insistente e não solicitada de mercadorias nas ruas, de barulho excessivo até madrugada, de condução perigosa particularmente de motos, da pedinchice agressiva, da venda de álcool sem licença e da prostituição desregrada. 

domingo, janeiro 07, 2007

CV é uno. Não há lugar para hegemonias

Duas semanas atrás, Felisberto Vieira (Filú) anunciou a sua disponibilidade para continuar na Câmara da Praia. A declaração veio logo a seguir à realização do Fórum Para o Desenvolvimento de Santiago. E parece vir a contra-corrente de declarações de dirigentes do PAICV, de governantes, que indiciavam um certo distanciamento em relação à sua pessoa. O facto de não ter sido reeleito para o cargo de vice-presidente do seu partido no congresso de Outubro parecia corroborar essa imagem de um político em queda. A ligação entre a iniciativa do Fórum de Santiago e a aparente ressurreição do Filú não parece fortuita. Noutros momentos e em outras situações delicadas, políticos em queda sentiram-se tentados a socorrer-se da carta de Santiago para reclamarem influência na orientação dos partidos, peso nas decisões e prioridade nos cargos. Dizem que lhes é devido uma deferência especial porque representam a ilha maior e com metade da população do país. Há, porém, um subtexto nessa mensagem que faz ressonância com opiniões expressas por certos grupos de interesse. Pelos que insistem em mostrar Santiago em contraposição às outras ilhas: Santiago, a ilha da resistência ao colonizador, a ilha mais africana e a ilha sempre discriminada. A tentação em jogar com paixões primárias, suscitadas ou exacerbadas por narrativas em que uns se vêem vítimas de outros, é o caminho da perdição na política e da denegação da democracia. O grande drama é que muitas vezes o poder instituído, governantes, partidos políticos, mostram-se complacentes perante esses extremismos. Em certos casos tenta-se mesmo cooptar as forças mobilizadas pelo discurso demagógico. No fecho do Fórum, o Primeiro-Ministro, a dado passo do seu discurso, disse: O desenvolvimento da ilha de Santiago esteve em plano menor na década de 90. Nos últimos anos, a ilha tem conhecido uma dinâmica ímpar para ocupar o lugar que merece no quadro do desenvolvimento global do país. A mensagem é inequívoca: Nos anos 90, o MpD colocou Santiago em plano menor e, agora, o PAICV devolve-lhe o lugar que merece. Compreende-se que o PM, face ao espectáculo de um rival político a se pendurar na realização de um fórum, tão legítimo como necessário como foi o de Santiago, para se livrar de queda iminente, procure retirar-lhe o tapete. Mas não é apaziguando os que falam de vitimação de Santiago que o PM serve a República. E não é, certamente, colocando o problema de Santiago em termos de ser-se pró ou contra o seu desenvolvimento. Muito menos deixar a sugestão que um partido ou um governo é a favor e outro é contra. O efeito corrosivo disso tudo é claramente visível. Fala-se nos jornais de ilha discriminada e de ilha espartilhada. Também se fala, em reacção, da necessidade de discriminação positiva e de procura de hegemonia. Cabo Verde é uma nação. Os caboverdianos são um povo único, não obstante as idiossincrasias de cada ilha. É responsabilidade de todos manter as condições para que a nação se reforçe com a dinâmica de todas as suas partes constituintes. Não há lugar para pretensões hegemónicas, sob que pretexto for. A confiança dos caboverdianos de que o governo, independentemente do partido que o suportar, nunca se deixará instrumentalizar por grupos de interesses, que privilegiam uma ilha ou grupo de ilhas sobre as outras, não deve ser nunca abalada. Os cidadãos e a sociedade devem ser duros e intransigentes com políticos que recorrem à demagogia e a retóricas de vitimação para garantir sobrevivência nos cargos e viabilidade política. 

quinta-feira, janeiro 04, 2007

CEDEAO. Basta de teimosia

O Governo rendeu-se finalmente à evidência. Segundo anuncia o seu site, o Governo vai, brevemente, apresentar propostas para um estatuto especial de Cabo Verde na CEDEAO. Já era tempo de posicionamentos ideológicos datados deixarem de determinar políticas públicas, particularmente a política externa do País. De facto, para além da ideologia oficial herdada do PAIGC, somos africanos e devemos estar na África, não se vê como justificar, em nome dos interesses de Cabo Verde, a nossa presença na CEDEAO. A integração não alterou a natureza das trocas comerciais. Continuaram viradas para Europa. O país não ganhou com importações de produtos mais baratos e de qualidade nem aumentou as suas exportações para um mercado putativo de 200 milhões de consumidores. Também ninguém verdadeiramente se interessou em usar Cabo Verde como porta de entrada para a Africa Ocidental. O gateway óbvio é Dakar e não se vê como Cabo Verde, a mais de 600 km do continente, pode competir com Dakar, o seu porto, o seu aeroporto e as suas comunicações rodoviárias e ferroviárias com os países da região. Para além disso não se descortina na governação do país, ao longo dos anos, qualquer plano de acção de sustento de uma estratégia de aproximação e que visasse potenciar e complexificar as relações com o continente. Quantos estudantes tem Cabo Verde nas Universidades da região? Quantas missões empresariais num e noutro sentido já se realizaram? O nível de relações institucionais existentes entre as câmaras de comércio, associações empresariais, bancos é suficiente para criar o ambiente de confiança necessário ao crescimento e diversificação das transacções entre o país e a região? É evidente que não se fez o mínimo que justificasse a crença na bondade da pertença à CEDEAO. Porquê então insistir na integração? Razões ideológicas? Se sim, quais os custos de se enviesar o interesse nacional? Até hoje, não houve ganhos significativos com o comércio na região mas já se paga, e bem, a imigração descontrolada no quadro da livre circulação. De facto, só podia vir descontrolo quando um país insular de cerca de 450 mil habitantes se abre para uma região de 200 milhões de indivíduos e com um rendimento per capita cinco vezes menor. Em vez de acesso a mão-de-obra qualificada, conforme as necessidades da economia nacional e no quadro de uma política de imigração inteligente e compreensiva, o país depara-se com imigrantes ilegais e não qualificados, suscitando problemas de integração e sobrecarregando as estruturas sociais. Cabo Verde não pode ignorar a região. O problema é saber como interagir de forma a haver vantagens mútuas. Já se viu que não houve ganhos na integração. Talvez um certo distanciamento seja proveitoso para todos. Aliás, há vários anos, a Mauritânia deu o pontapé de saída. Num outro contexto, a Suiça é o exemplo de país que triunfou afirmando a sua neutralidade política e mantendo-se distante das organizações europeias e, até muito recentemente, mesmo da ONU. Isso não impediu um forte comércio com os vizinhos nem que organizações internacionais se instalassem no seu território, com todos os ganhos daí provenientes. A insularidade e a descontinuidade territorial constituem desvantagens se se confronta o mundo com raciocínios rígidos, ditados por ideologias passé. Podem transformar-se em vantagens quando, com realismo e espírito inovador, se capitaliza sobre a flexibilidade e as múltiplas interfaces que oferece para retirar benefícios da inserção na economia mundial e regional.  

quarta-feira, janeiro 03, 2007

Fim à corrupção eleitoral

A questão eleitoral vai estar na ordem do dia nos próximos meses. A Constituição impõe que qualquer alteração à Lei Eleitoral se faça até 10 meses antes das eleições. A proximidade das autárquicas, provavelmente no primeiro trimestre de 2008, vai imprimir uma outra urgência à reclamação dos diferentes actores políticos em pôr cobro às anomalias, ainda presentes no processo eleitoral. É previsível que a atenção se vá concentrar na revisão do Código Eleitoral, como aconteceu em outros momentos. Persiste a ideia que, pela via da adição e/ou subtracção de artigos na Lei, consegue-se a solução para os problemas eleitorais. A evidência das experiências passadas não aponta nesse sentido. Muito pelo contrário. A insistência em mexer na legislação, com todo o esforço político que isso requer, na medida em que é uma lei votada com maioria de dois terços, tem o efeito de deixar desatendidas outros factores, provavelmente de maior relevância para a lisura e a transparência do processo. Hoje, é prática assente em Cabo Verde que as pessoas, em actos eleitorais de todo o tipo, designadamente nacionais, partidárias e associativas, podem legítima e descaradamente fazer boca de urna para desencorajar os eleitores dos adversários, usar artimanhas e excessos de formalismo para impedir cidadãos de exercer o seu direito de voto e forçar um sentido de voto com dinheiro, géneros alimentícios, materiais de construção e promessas várias. Não é o que a Lei prevê, em termos de processo e de procedimentos, que está mal. O meio circundante é que é permeável à corrupção, seja por razões politico-partidárias, seja por razões pecuniárias. Corrupção que eventualmente acabará por afectar o funcionamento das instituições essenciais ao processo, nomeadamente as comissões de recenseamento, as mesas de voto e a DGAE, porque é tacitamente aceite por todos como prática legítima de campanhas. Se não se atacar frontalmente o problema ao nível da ética, que o processo de legitimação do Poder impõe a todos, e da criação de um ethos nas instituições eleitorais, compatível com as suas excepcionais responsabilidades, todas as iniciativas legislativas serão exercícios essencialmente inúteis. O Governo, enquanto órgão que superintende o Estado, tem uma especial responsabilidade em garantir que todos os cidadãos exerçam o seu direito de voto. E uma das dificuldades encontradas pelos eleitores tem sido o cartão de identificação. Muito já se fez para facilitar a obtenção do Bilhete de Identidade. Muito mais deverá ser feito. O Pais, por várias razões, designadamente de Segurança e de controlo da imigração, devia tornar obrigatório o uso do BI. É para o uso obrigatório do BI que todos os países estão a convergir, mesmo os anglo-saxónicos tradicionalmente avessos a esse tipo de documentos e renitentes em permitir ao Estado acréscimos de controlo sobre indivíduos. O Estado durante este ano podia assegurar-se que todos tivessem o seu BI. O problema de identificação no acto de voto ficaria resolvido. A par disso, o Estado devia garantir que todos soubessem o seu número de recenseado e, pela via de acesso a um banco de dados a partir de qualquer ponto do território nacional, se pudesse verificar onde cada cidadão estava registado como eleitor e, caso necessário, como proceder para alterar o local de registo. Tudo isto parece factível. Que se criem as condições para que cada eleitor, com o seu BI e o seu número de recenseado, se sinta mais confiante no exercício da sua cidadania. 

quarta-feira, dezembro 27, 2006

Dívida da Electra: Risco Orçamental?

O BCA comprou por 40 milhões a dívida de 70 milhões de euros da Electra para com a EDP/ADP. Esta notícia, que muita tinta faria correr noutras paragens, aqui, em Cabo Verde, foi parcamente referenciada na comunicação social. Os vários sectores de opinião, designadamente os especializados, ficaram mudos e quedos face à primeira operação financeira do género no País. A mensagem passada pelos mídias foi que a Electra viu a sua dívida reduzir-se em 30 milhões de euros, que a operação foi interessante para o BCA e que o Governo ganhou uma vez mais no imbróglio Electra/EDP/Estado de Cabo Verde. Os factos parecem ser outros. Dos dados vindos ao público depreende-se que o BCA, em parceria com a Caixa Geral de Depósitos (CGD) e o BPI, foi de encontro ao desejo da EDP em ver-se livre da Electra no quadro da uma estratégia de saída do tipo cut and run. Resultados da operação: A EDP recebe 40 milhões fresquinhos, sem risco, em vez dos 70 milhões, mais risco, e em vinte anos; o BCA consegue uma autorização especial para dilatar a sua carteira de crédito, aumento de 25% segundo a imprensa nacional, e torna-se credora da Electra em 40 milhões, mais os juros a pagar no prazo acordado. A Electra em vez de um passivo de 70 milhões regista um de 40 milhões, mais o serviço de dívida anual, e em moeda nacional. O Estado em vez de avalizar a dívida de 70 milhões à EDP dá um aval anual correspondente ao serviço da dívida de 40 milhões ao BCA; o BCA emite obrigações no valor próximo de 50% da dívida e ganha outra vez liquidez para reinvestir; a Bolsa de Valores adquire uma outra dinâmica e o público pode colocar as suas poupanças em algo mais do que depósitos a prazo. Qual é o catch? Alguém tem que pagar pelos riscos do BCA e dos parceiros no estrangeiro que ajudaram a montar a operação. Os detentores das obrigações devem ser remunerados acima das taxas aplicadas a depósitos para se sentirem compensados. O BCA, no centro desta operação, tem que aplicar uma taxa de juros à Electra que pague todos os custos e riscos acrescidos e ainda resulte num lucro interessante. Por exemplo, se os juros forem a 9% a taxa mais baixa do BCA, a ELECTRA deverá pagar ao fim de 20 anos um valor global, principal mais juros, de cerca de 86 milhões. Para pagar, a ELECTRA terá que prestar serviço e, para isso, é indispensável fazer-se grandes investimentos. Segundo estimativas vindas a público a empresa depara-se com um atraso de 4 anos em investimentos urgentes. Realizados os investimentos necessários há a batalha do tarifário, uma matéria politicamente sensível. Entretanto, retorno dos investimentos feitos e capacidade para pagar dívidas passadas só serão possíveis com tarifas justas. Para garantir toda operação, em última instância, está o Estado que, todos os anos, avaliza o serviço da dívida. Isso significa que, se a ELECTRA falhar, o Estado, via o Orçamento, deverá encontrar os recursos para compensar o BCA. É o tipo de risco orçamental a que o FMI se referia no memorando da sua última missão a Cabo Verde. É um risco real considerando que foi à volta das tarifas de água e energia que se desenvolveu o conflito com a EDP e que resultou no posterior desengajamento do parceiro estratégico. Se a ELECTRA não cumprir haverá tensões orçamentais com potenciais perturbações na estabilidade macroeconómica do País. Afinal uma das razões porque se privatizou, e se continua a privatizar empresas públicas, é precisamente para evitar o impacto nefasto, ao nível macro, de situações do género.  

terça-feira, dezembro 26, 2006

O desfear da nobreza no dar

Ao longo da semana do Natal a comunicação social pública e, particularmente a televisão, tem sido militante em trazer a público todos actos de caridade e solidariedade, não interessando a origem das iniciativas e as motivações subjacentes. Assim assistimos a cenas, designadamente de associações, ministros e JPAI a fazerem ofertas de Natal. Cenas de uns a oferecer, em boa verdade, dádivas de outrem, e outros, estimulados pelos mídias, a mostrarem-se gratos pelos presentes. O propósito das imagens e das reportagens até pode ser nobre. Diz-se que é preciso incentivar o espírito de solidariedade. O problema é quando o acto de dar se transforma numa forma de ostentação de personalidades e organizações à procura de mais valias, muitas vezes mais valias políticas. Em todo o mundo, gestos de caridade e de solidariedade são, em grande parte, anónimos ou intermediados por organizações idóneas e acima de desse tipo de motivações. E isso por uma razão simples: para não ofender as pessoas que recebem. Solidariza-se sem ferir o sentido de dignidade do indivíduo. Porque o objectivo não é extrair agradecimentos, mas sim disponibilizar meios para a pessoa ver-se em posição de retomar completamente o controlo da sua vida, encontrar a motivação para conseguir para si e a sua família meios autónomos de subsistência e construir vias próprias de prosperidade futura. Alheio a isso, naturalmente, devem estar espectáculos armados para reforçar a dependência, reproduzir esquemas de controlo de populações e incentivar intermediários pouco escrupulosos com objectivos políticos indisfarçáveis. Indisfarçáveis até porque, muitas vezes, são agentes políticos, a começar por ministros, que, pelo modo de envolvimento na relação de doação, uma relação institucional de solidariedade da comunidade nacional com os mais desfavorecidos através do Estado, abusam da sua posição e causam a sua transformação numa relação pessoal e partidária. Outros interesses, agora comerciais e de imagem, movem outros protagonistas nesses espectáculos. A Televisão, particularmente, parece não notar a publicidade gratuita nas reportagens de dádivas. Grande parece ser a sua ânsia de reproduzir a cultura de indigência no País, a coberto de demonstrações de solidariedade. 

O PM, o pluralismo e o Natal

Na véspera do Natal, os caboverdianos foram brindados com mais um discurso do Sr. Primeiro Ministro. Como não podia deixar de ser, o discurso foi político e partidário. Também foi de gosto duvidoso trazer temas polémicos para o seio e convívio de famílias a prepararem-se para a Ceia do Natal. A insistência do PM em dar abraços a toda a gente e em falar em paz e concórdia não o fez, porém, diminuir a tónica propagandística dos seus discursos habituais. Uma das mensagens que quis veicular, e que é tão recorrente como perigosa, está na seguinte passagem:"Para lá das nossas normais e salutares diferenças, concentremo-nos naquilo que é essencial. E o essencial é o progresso de Cabo Verde". O PM insiste em manter em campos opostos a manifestação das diferenças e o progresso do país. O pluralismo que resulta do exercício da liberdade por indivíduos, partidos, sectores da sociedade civil não é apresentada como essencial à preservação da liberdade e da democracia e como essencial à construção da prosperidade para todos e do progresso do País. O PM exorta-nos para ir “para lá”das diferenças. Parece não compreender que o nosso sistema político dita que o progresso seja construído no exercício permanente do contraditório e na manifestação permanente de diferentes pontos de vista. Uns a salientar que o que se está a fazer está errado, outros a dizer que é insuficiente ou ainda outros a achar que não é o adequado para atingir os fins propostos. Neste mar alto e vivo é que governos navegam. Os governantes têm um mandato mas isso não significa que receberam um cheque em branco para a legislatura. Ao longo de todo o percurso terão que construir vontades, na maior parte dos casos de geometria variável, para atingir as múltiplas etapas do seu projecto político. Governar não significa impor uma tirania da maioria. Não significa a rendição, durante cinco anos, das diferenças de opinião e dos interesses diversos da sociedade caboverdiana à vontade da maioria que se expressou no dia das eleições. A dinâmica política deve manter-se e os governos não devem sentir-se frustrados com a luta incessante que tal dinâmica exige, nem caírem na tentação de suprimi-la ou levar os diferentes actores sociais, políticos ou económicos a conterem-se em nome de pretensos interesses superiores da Nação. A nossa própria história de país independente diz-nos que os interesses do país não são atingidos quando existe unanimidade de opiniões e unicidade das instituições e quando é única a forma política de expressão. Conservar o pluralismo em Cabo Verde é tarefa e responsabilidade de todos. A comunicação social pública tem deveres especiais, constitucionalmente estabelecidos, de garantir a pluralidade de ideias e de opiniões nas suas emissões. Não pode deixar-se reduzir à condição de instrumento de propaganda do governo. E muito menos de ser o veículo de sugestões que a liberdade de expressão, incluindo liberdade de imprensa, pode ser um luxo, dispensável em nome do progresso, e que acarreta custos, evitáveis debaixo do manto do consenso.  

quinta-feira, dezembro 21, 2006

A dança das CPIs

O Presidente da Assembleia Nacional dá hoje posse a duas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) sobre as ZDTIs. Uma pedida pelo MpD, outra pelo PAICV. É a repetição de um filme já conhecido. Na legislatura passada também foram constituídas e duas CPIs para as privatizações e duas para questão eleitoral. Sempre que a oposição pede a criação de uma CPI, o partido no governo responde com uma outra sobre o mesmo objecto, só alargando o escopo do inquérito para abarcar o mandato do Governo do MpD. È óbvio que tais manobras são para desacreditar o parlamento, para esvaziar de conteúdo um instrumento central da fiscalização do Governo e da Administração Pública e para anular quaisquer efeitos, designadamente a credibilidade das matérias enviadas ao Procurador Geral para efeitos de acção criminal. A importância das CPIs é tal que a própria Constituição as prevê no nº 1 do art.146.O Regimento da A N garante que, para além dos grupos parlamentares, os deputados em número de cinco podem requerer a constituição de uma CPI. Em número de vinte de deputados a constituição da CPI é obrigatória. Garante-se assim o direito das minorias em criá-las para além da vontade da maioria. A credibilidade das CPIs, porém, sofre muito com a sua instrumentalização partidária. Um aparente faux pas dos deputados do PAICV impediu que a constituição da CPI por eles requerida fosse precedida de um debate. Ou seja, da oportunidade para ventilar antecipadamente as conclusões do inquérito. O então ministro da Economia, nas véspera da sua demissão, passou a manhã toda no parlamento a passear um dossier amarelo bastante grosso, á espera do tal debate. Não aconteceu. O requerimento da CPI foi assinado por 20 deputados. A constituição da CPI era obrigatória e, portanto, não carecia da aprovação do Plenário nem era precedida de debate. O Presidente da A N ainda tentou resgatá-lo, chegando a ponto de ir contra o parecer unânime da Comissão de Assuntos Jurídicos e Constitucionais, mas acabou por se render quando o GP do PAICV apercebeu-se do absurdo da situação. Ou talvez já não interessasse dar voz ao ministro, sabendo que ele ia demitir-se no dia seguinte. A tentação para instrumentalizar as CPIs torna-se maior com a omissão da Lei quanto aos limites temporais da sua actuação. De facto não parece curial que o parlamento numa legislatura faça fiscalização política de actos do Governo numa outra legislatura. Se há indícios de ilícito isso deve ser inquirido numa outra sede. A PGR, por exemplo. Limitar a influência partidária nas CPIs é o caminho a seguir para a sua credibilidade como instrumento fundamental da actuação da A N como órgão de soberania.  

terça-feira, dezembro 19, 2006

Vendas do Estado.Porquê e para quê?

O Governo anunciou na sexta-feira que vai vender 21% das acções do Estado na ENACOL. Dias atrás, notícias vieram ao público da venda de 51% das acções na Sociedade de Tabacos por 900 mil contos. O anúncio público de vendas não foi acompanhado das razões de política que justificariam o fim das participações do Estado nessas empresas. De facto privatizações não se prestam simplesmente a realizar um encaixe financeiro para o Estado. Privatizar significa, antes de mais, iniciar ou aprofundar um processo de descentralização das decisões económicas. Decisões, até o momento tomadas por órgãos centrais de planeamento, passam a ser actos de vontade de miríades de operadores, reagindo a uma realidade económica imediata, fluídica e complexa. De facto a economia moderna e globalizada, voltada para a satisfação de necessidades específicas de indivíduos e em que se exige bens e serviços de toda a espécie à medida do consumidor, customization, pressupõe um nível de descentralização e uma reorganização em redes funcionais, impensável poucos anos atrás. Privatizações também significam a possibilidade de direccionar a captação de poupanças nacionais e estrangeiras para o investimento no País ao mesmo tempo que diminui consideravelmente o risco orçamental, ou seja, o risco do Estado vir a acumular défices no futuro por ser, na prática, o avalista das dívidas de todas empresas públicas ou de capitais públicos. Um outro papel importante das privatizações é abrir o País para parcerias estratégicas, tanto no sentido da empresa nacional se associar para competir no mercado global como, no caso de pequenos países como o nosso, de não se ficar de fora da onda de modernização tecnológica, organizacional e de gestão, essencial a uma inserção dinâmica e frutuosa no mercado internacional. Uma coisa porém é certa. Ninguém privatiza para conseguir verbas para emprego público. O aditamento nesse sentido feito à lei das privatizações na lei do Orçamento de 2006 foi de facto uma aberração sem precedentes. Convém, porém, dar um propósito justo ao encaixe financeiro das privatizações. No passado, o resultado das vendas foi juntar-se a doações para perfazer os cem milhões de dólares do trust fund. Um fundo cujo proprietário é a República de Cabo Verde e que é gerido pelo Banco de Portugal e tem como beneficiário das aplicações financeiras o Estado caboverdiano. Hoje não se sabe onde são aplicadas essas verbas. Da mesma forma que “não se sabe” para onde vão as receitas de vendas de terrenos. Onde deviam estar, que é no investimento nas ilhas que vão receber a carga resultante do fluxo turístico, primam pela a ausência. O Governo deve ter em conta que os resultados dessas vendas constituem receitas extraordinárias e são, portanto, irrepetíveis. Ou são aplicadas em investimentos para o futuro ou são colocadas em trust funds para o benefício das actuais e futuras gerações. Nunca para enterrar no orçamento de funcionamento e tornar o Estado cada vez mais obeso, ineficiente e autista perante os desafios que o país enfrenta no momento. 

segunda-feira, dezembro 18, 2006

Auto-estradas inter ilhas precisam-se

Linhas marítimas regulares, seguras e a custos razoáveis são realmente as auto-estradas que o arquipélago precisa. A palavra desencravar, muito presente nas promessas dos políticos e dos partidos, deve ganhar um significado maior que transcenda a simples preocupação de uma pequena povoação, algures numa das ilhas, em ter uma estrada. Deve significar, hoje, a possibilidade de qualquer operador económico de ter acesso efectivo a um mercado interno unificado e de se posicionar, a partir de qualquer ponto do território nacional, para tirar proveito dos fluxos de capitais e de pessoas que chegam a Cabo Verde. Para que a produção local de bens e serviços aceda a economias de escala, que tais fluxos possam gerar, é fundamental que exista um sistema de transportes compreensivo à altura das necessidades do mundo moderno. Segurança, qualidade, baixo custo, e conveniência são alguns dos atributos exigíveis a um tal sistema para poder servir o número crescente de nacionais e estrangeiros que viajam entre as ilhas. O Governo, como se viu na discussão da Lei do Orçamento, enrola-se no manto das iniciativas dos privados no sector, sugerindo que resultam de políticas suas. Políticas que não explicita. Quando se concretiza uma iniciativa com a do navio “Musteru” é que se vê que esse navio de 450 passageiros vai fazer a mesma rota do navio “Sal Rei”, operacional há um mês entre Praia, Fogo, Brava e Boavista. Quando empresários na Boavista reclamam a suspensão das viagens do Sal-Rei é que se nota que a ENAPOR, empresa pública, e, portanto, instrumento das políticas do Governo no sector portuário, ainda não respondeu com a adequação dos portos às particularidades dos navios roll-on/roll-off e às exigências do transporte de passageiros. Onde estará a política do governo? As ligações inter-ilhas são mercados a desenvolver. Será que os custos envolvidos deverão ser absorvidos pelo privado, ficando este sujeito a ver o resultado do seu investimento partilhado por outros operadores, free riders, que não suportaram os riscos associados a um mercado incipiente. Que em consequência o primeiro ou os primeiros vão sacrificar as suas operações para conter os custos excessivos de entrada. Sacrificar o quê e em quê? A segurança, a regularidade, o preço, a conveniência? Uma política do Estado para o sector devia lidar com as ligações entre ilhas de forma diferenciada. Há linhas a subsidiar: Fogo-Brava é um caso evidente. Há linhas que podiam ser concessionadas, particularmente no transporte de passageiros, ou por constituírem mercados incipientes, mas com grande potencial a médio prazo, ou pelo facto de ser do interesse do Estado assegurar-se que o país é servido por navios com terminadas especificações de segurança, de navegabilidade e de conforto. Navios com os quais se acordará horários convenientes para o público e tarifas sociais. A atitude liberal em todas as linhas, sabendo que muitas delas constituem mercados imperfeitos, poderá não ser vantajosa para o país. E quando se pensa que o grande impulso no crescimento do tráfico inter-ilhas deverá vir de passageiros estrangeiros, mais uma razão haverá para criar as condições para que operadores invistam em barcos seguros, rápidos e modernos e sejam capazes de, em ambiente de concorrência e em prazos razoáveis, ver o retorno ao seu capital. O que não se quer é que o País fique sempre à beira de cair umas dezenas anos na qualidade dos seus transportes internos porque os armadores, para conter os custos, suportar os riscos inerentes e ser competitivos, têm que comprar barcos velhos, operá-los a baixa velocidade, seguir horários de conveniência e aplicar tarifas caras. 

sexta-feira, dezembro 15, 2006

Estado parasita ou Estado dinâmico?

A declaração de nulidade dos decretos-leis, que alteravam a baixa de incidência do IVA, lançou uma espécie de novela política. Viu-se governo omisso e aumento dos preços. Houve a novidade da moção de censura e o espectáculo do Governo a responsabilizar acórdão, oposição e comunicação social pelo stress vivido no país. Os preços subiram e as receitas do Estado aumentaram. O Governo recusou-se a um entendimento com a oposição por causa da gasolina. Em consequência, a expectativa de receitas para o ano 2007 melhorou em centenas de milhares de contos. O consumidor, em 2007, pelo contrário iria ver-se aflito para pagar 15% sobre o valor da factura na electricidade, na água, no gás e nos combustíveis em geral. No último instante, na lei do orçamento, chegou-se a uma solução, com o Governo a ceder na gasolina. 2007 já não será tão difícil. A novela porém trouxe à baila questões para reflexão, designadamente, a relação carga fiscal/riqueza nacional, o Estado face à economia, parasita ou dinamizador, e a subsistência de preconceitos ideológicos em substituição de políticas públicas. De facto, de um ponto de vista, as receitas fiscais são poupança forçada, são rendimento retirado ao consumo ou ao investimento de pessoas e empresas. Que têm razão de ser na medida em que, designadamente, possibilitem os serviços que só o Estado pode prestar (soberania, justiça, segurança), suportam a solidariedade nacional e regional e financiam investimentos públicos indispensáveis. Nessa perspectiva, o ideal é que a carga fiscal seja suficiente para financiar o Estado, um estado eficiente, mas que não entrave o desenvolvimento, absorvendo percentagens exageradas da riqueza nacional. A via para o aumento de receitas passa pela aposta no crescimento da economia e do emprego. O Estado não deve ser estático e parasitar a economia. O Estado, no mundo de contenção fiscal como condição para se ser competitivo no mundo globalizado, deve ser dinâmico, de incentivo ao crescimento económico e de busca activa de caminhos para diminuição da carga fiscal, a exemplo da Irlanda onde, hoje, essa carga se situa nos 12,5%. Não é a toa que cresce a 9% ano e tem o 2º maior PIB per capita da Europa. O Estado caboverdiano historicamente tem uma postura adversária à economia privada. É preciso dar combate a isso e adoptar uma nova cultura mais consentânea com as exigências dos tempos. Preconceitos ideológicos a determinar políticas é algo que, também, se deve combater. As negociações, por exemplo, sofreram com a ideia arreigada de quem usa a gasolina são os mais abastados. Isso contra toda a evidência. É só ver quem anda em Pardos, Tuaregs, Mercedes, BMW, todos diesel, e quem passa nos starlets a gasolina a caminho do trabalho. Políticas públicas devem suportar-se em algo mais sólido do que preconceitos datados, tentações de brincar a Robin dos Bosques e demagogia pura. Que aprendamos todos com os erros. 

quinta-feira, dezembro 14, 2006

E agora Sr. Presidente?

O Governo e a sua maioria recusaram-se a inscrever verbas no Orçamento do Estado para a instalação do Tribunal Constitucional. O Governo não tem razão: 1º - os recursos para o TC são despesas obrigatórias porque decorrem da Constituição, que o criou, e da Lei que determinou a sua orgânica e, portanto, têm de constar do Orçamento; 2º o Governo não tem a opção de adiar, congelar ou não disponibilizar recursos para o funcionamento de outros órgãos de soberania. Nem o Parlamento; 3º A urgência de instalação do TC é hoje óbvia. Com o Tribunal Constitucional a funcionar, os caboverdianos não passariam quase três anos a pagar impostos inconstitucionalmente criados. O facto de todos sofrerem, ainda neste mês de Natal, as consequências disso devia levar o Governo a ponderar e a não insistir na atitude de se impor a todos, sem a devida preocupação com os custos para as pessoas, para o sistema político e para o País. Minutos antes da recusa dos fundos para o TC era a evidente a satisfação perante o sucesso das negociações das taxas do IVA. No momento seguinte, satisfação cede lugar a teimosia e a capricho e volta-se à intransigência. E outra vez numa questão fundamental, a constitucionalidade de actos e procedimentos. É como se ninguém aprendesse com os erros. Por isso, é que o sistema político inclui um poder moderador de excessos. O Poder do Presidente da República. O País já sofreu e sofre com a inexplicável relutância do PR em ser moderador. O PR não pode recusar-se a cumprir as suas competências por eventual lealdade ao Governo. Lealdade institucional é outra coisa. Começa pelo respeito pelo princípio de separação e interdependência dos poderes. O PR é suprapartidário e todo o país espera que ele faça uso do poder de promulgação de leis da A N, de decretos-leis e decretos regulamentares do Governo para se assegurar da constitucionalidade dos processos e procedimentos, seguidos na feitura das leis. É uma responsabilidade a que não pode se escusar, sob pena de pôr em causa o sistema político e desacreditar a democracia caboverdiana. O País espera e observa.  

segunda-feira, dezembro 11, 2006

Esquizofrenia na República

As Forças Armadas de Cabo Verde preparam-se para comemorar o 40º aniversário no dia 15 de Janeiro. Esta notícia parece inócua até se começar a ver as incongruências. O Estado de Cabo Verde tem 31 anos de existência. As Forças Armadas, enquanto força ao serviço da Nação e força apartidária e politicamente neutra, foram criadas pela Constituição de 1992 e pela Lei 62/92. A instituição que anteriormente existia, as Forças Armadas Revolucionárias do Povo, FARP, nem tinha assento na Constituição de 1980.A única referência constitucional estava na proclamação do Presidente da República como Comandante Supremo das FARP. A razão para isso residia na natureza das FARP como bem clarificou o então PR, em 1985: As FARP são integradas não por militares mas por militantes armados. São o braço armado do Partido. E é por isso que, em 1988, o Governo instituiu o 15 de Janeiro como dia das FARP, uma data com significado exclusivo para os caboverdianos no PAIGC. Uma data para a auto- glorificação dos comandantes, na lógica de Poder do regime. Tem sido de uma enorme irresponsabilidade deixar as FA, ao longo de todos estes anos, persistir na linha de comemoração dessa data. Uma data com valor simbólico profundo no quadro do regime anterior mas contrário ao entendimento que se tem hoje das forças armadas. As FA não constituem uma milícia de um partido. São uma instituição nacional estritamente subordinada às autoridades civis democraticamente legitimadas. De facto, não podemos ter forças armadas que assumem uma existência antes da Constituição, antes do Estado. Noutras paragens e noutros tempos assunções do género justificaram tutelas de democracias, posturas de guardiães de conquistas passadas e interferências múltiplas. A subordinação das Forças Armadas à autoridade civil é um elemento chave da estabilidade das democracias. As tradições, os rituais e as comemorações nas FA devem servir para reforçar isso e também a sua condição nacional e a sua neutralidade política. Uma coisa parece certa: não é aceitável termos comandantes por aí a passar visões particulares de história às nossas tropas. Se uns e outros querem comemorar actos ou momentos que justamente consideram de glorioso que o façam mas sem envolver instituições como as FA que tem a missão nobre de defesa da soberania e da ordem constitucional.

quinta-feira, dezembro 07, 2006

Etanol, será uma via?

Hoje um tema incontornável é a energia. A dependência do petróleo torna-se crítico, o ambiente está a ser afectado de forma imprevisível, o clima pode estar na iminência de mudanças profundas e o mundo mostra-se mais perigoso com a instabilidade dos países produtores do petróleo. Países pequenos como o nosso têm que ser mais eficientes no uso de energia. Sem isso, não se é competitivo no mercado internacional. Na busca de maior eficiência há uma via: encontrar um produto de substituição, renovável, e a um preço competitivo com os preços actuais e futuros dos derivados do petróleo. O etanol, o álcool etílico, tem vindo a afirmar-se como tal no Brasil e nos Estados Unidos. A indústria automobilística, desde de 1993, produz carros a gasolina que funcionam bem com blend de gasolina a 10% de etanol. A Califórnia lidera no processo de estender o etanol no blend até 45%. O álcool aumenta os níveis de oxidação do combustível, retirando maiores octanas e tornando os fumos menos tóxicos. Qual é interesse disso para nós? Cabo Verde tem uma cultura de cana, com séculos de existência, virada para a produção do mel e do grogue. A cana tem sido o cash crop, a cultura de rendimento do agricultor caboverdiano, particularmente em S.Antão. Também, é onde ele se refugia quando tudo o resto falha por falta de mercado ou perde-se sob o ataque das pragas. Hoje essa cultura de rendimento está em perigo grave devido à proliferação do grogue de açúcar. O interesse pela cana renova-se em todo o mundo, mas é para a produção do etanol. Leis, como a que entrou em vigor em Janeiro deste ano no Hawaii e que favorecem a venda da gasolina num blend com 10% de etanol, criam mercado para esse produto. Nos Estado Unidos um enorme mercado está emergir mas aí o etanol é tirado do milho e, segundo os experts, produzir etanol a partir da cana é cerca de oito vezes mais eficiente do que a partir do milho. Isso coloca o etanol da cana em melhor posição no mercado americano. Cabo Verde poderá ter aqui uma oportunidade de recuperar a sua cultura de cana. Cana para a produção de etanol para o consumo interno e para exportar. A água para irrigar os campos de cana poderá vir do aproveitamento das águas superficiais na linha da experiência da barragem do Poilão. Águas negras tratadas podem também servir. Grandes ganhos podem ser vislumbrados: ganho para os agricultores e para a população rural que finalmente teriam um cash crop; ganho para o país porque menos importações e mais exportações; ganho para o ambiente com um combustível menos poluente. Um outro ganho seria a possibilidade de utilizar AGOA para facilitar em termos competitivos a entrada no mercado americano. O Governo devia procurar explorar as possibilidades de exploração da cana para a produção do etanol e a viabilidade de uma lei obrigando a gasolina a ter 10% de etanol, com vista à criação de um mercado interno para esse produto.

terça-feira, dezembro 05, 2006

Para quê quadro especial?

Ontem no Parlamento foi apresentada uma proposta de Lei que normaliza salários do quadro especial do PR, da A N e do Governo. O quadro especial diferencia-se do resto da Função Pública pela natureza eminentemente de confiança política dos cargos. O processo de contratação devia ter em conta as exigências específicas dos mesmos. A remuneração devia espelhar a precariedade intrínseca da actividade política conexa que automaticamente cessa com o fim do mandato do titular ou com a sua demissão. Por outro lado, a existência de um quadro de pessoal de livre escolha pelos políticos pressupõe que se queira o resto da Administração Pública livre de interferência política. A Constituição no art. 236º e seguintes obriga o pessoal da Administração Pública ao cumprimento de deveres, designadamente de justiça, isenção, imparcialidade e de não discriminação em virtude de opções partidárias. Diz, ainda, que os funcionários estão subordinados à Constituição e às Leis, que devem colocar-se ao serviço do interesse geral e que não podem ser instrumentos de actividade partidária do Governo. A realidade que se vive no País foge ao quadro de lisura, transparência, isenção e imparcialidade intentado pela Constituição. O quadro especial é, em geral, de competência duvidosa porque as nomeações regem-se por critérios de conveniência pessoal e política. É pouco efectivo porque não há um sistema compreensivo de desenvolvimento, execução e monitorização de políticas a trabalhar em articulação com estruturas do Estado. A Administração Pública, entretanto, é penetrada, a todos os níveis, por nomeações políticas. Com isso, desestruturam-se carreiras, perde-se a memória nas mudanças sucessivas, dificilmente se consegue manter um sistema de aprendizagem cumulativa, não se impõe o mérito como critério central de avaliação e não se desenvolve uma cultura de servidores públicos voltados para consecução do interesse geral. Há ainda um outro lado: interesses corporativos cristalizam-se e a capacidade de execução do governo diminui com a criação de pequenos feudos. O Governo do PAICV agravou a partidarização de uma Função Pública que, desde de 1975, sempre se viu como instrumento de quem está no Poder. Isso tem consequências: Investidores e outros operadores vêm notando a relutância em dar seguimento a decisões de ministros e em cumprir acordos com o Estado. O País perde em toda a linha: O Governo não tem pessoal e estrutura para implementar com competência as suas políticas, não obstante os elevados custos de funcionamento; os cidadãos perdem por não terem uma administração que sirva indistintamente os utentes e que seja um factor importante do desenvolvimento; os jovens quadros nadam num mar de frustrações, sem perspectivas de carreira e de uma participação gratificante ao nível pessoal e profissional.

segunda-feira, dezembro 04, 2006

Telecom, ANAC e as boutiques

Os consumidores das telecomunicações contam agora com novas tarifas. A chamada local aumentou 30%, a Internet de 22,5% e a taxa de assinatura 56%. A interurbana continuou cara na mesma e a baixa nas internacionais só marginalmente afecta a maioria porque grande parte dessas chamadas são iniciadas no estrangeiro. A imprensa local deixou passar as justificações da Telecom e da ANAC, a agência reguladora. A Telecom diz que vai perder dinheiro e apresenta a perda como contribuição para o desenvolvimento do País. A ANAC lembra que as antigas tarifas vinham de há 18 anos atrás e que se impunha um ajustamento aos custos reais. Parece esquecer que preços das telecomunicações caíram em todo o mundo. Para sectores de opinião mais partidarizados é mais uma vez a perda do monopólio da Telecom, é outra vez o Governo no resgate. O sentido das alterações revela que o centro da preocupação da Telecom são as chamadas internacionais. Porquê?! Porque ali tem concorrência: as boutiques para o povão e a Skype ou outros serviços com base no VOIP para as empresas. Por isso baixa o preço das internacionais e torna a Internet mais cara sob o duplo efeito do aumento da chamada local e do acesso à Net. Na briga com as boutiques todos pagam. Os consumidores perdem dinheiro, a economia sofre com os custos elevados e a as esperanças postas nas tecnologias de informação e comunicação ficam suspensas. Investimentos como a ZAP não são completamente explorados porque imagine-se o que as boutiques fariam de uma ligação em banda larga de 8 megabits/segundo. Compreende-se que a Telecom esteja a proteger o seu negócio do fixo com preços e taxas de assinaturas mais elevados e com incentivos ao crescimento do tráfico fixo-móvel. No processo é bem possível que comprometa o aparecimento de um significativo volume de tráfico, induzido por uma nova economia, que seria benéfico a todos. Quanto à ANAC fica-se sem saber que políticas norteiam a sua actuação. Aparentemente não são as de baixar custos para favorecer a inter-conectividade de tudo e de todos; não são as de favorecer o despontar de uma economia de prestação de serviços no modelo, por exemplo, das BPO; não são as de favorecer a concorrência leal no sector, eliminando as operações provadas ilegais e levando a Telecom a clarificar-se, quanto aos custos, no papel de gestor da rede pública, tanto em relação a si próprio, enquanto operador, como em relação a outros prestadores de serviços; não são as conducentes a levar a banda larga a todos. E o Governo, por onde pára?! 

quinta-feira, novembro 30, 2006

Jobs, Jobs, Jobs

 Mais de duas mil jovens mulheres, muitas com filhos, perdem o emprego nas fábricas de S.Vicente nos últimos cinco anos e ninguém nota. Atrasos nos salários de funcionários em 2000 precipitam a queda de popularidade de um Governo e subsequente perda de eleições. A aparente disparidade de reacções nos dois casos revela a importância do emprego do Estado na psique nacional. Outros empregos podem ser bem vindos. A referência, porém, é a função pública. A postura do Governo na discussão do Orçamento do Estado revela essa dissonância. O emprego não está no centro da atenção, não obstante os quase 30% de desemprego. Fala-se de estabilidade, de credibilidade, de reservas externas, da inflação e do PIB. O emprego é um tema marginal. É visto na área social, redistributiva e na perspectiva de luta contra a pobreza. O resultado é que o Governo nunca se vê pressionado para avaliar a eficácia das suas políticas no número de empregos que a economia cria. Não dá suficiente atenção aos problemas que as empresas se deparam na procura e desenvolvimento de mercados, em ultrapassar as dificuldades de ausência de regulação, em enfrentar a concorrência desleal de sectores informais e nos custos excessivos de contexto, particularmente os derivados da relação com os serviços públicos. O mercado de trabalho com os seus problemas, designadamente, de falta de estruturação, da pouca articulação com centros de formação, de falta de flexibilidade, de dificuldades na mobilidade inter-ilhas e de absorção de trabalhadores imigrantes, não tem o nível de intervenção desejado para responder às necessidades de investidores e operadores em geral. O Governo focaliza-se nas infraestruturas, muitas vezes, pelos ganhos políticos imediatos derivados da maior visibilidade das obras. Devia, porém, garantir que o interesse turístico por Cabo Verde, traduzido no aumento do investimento directo estrangeiro, tivesse real impacto na economia nacional. Milhares de postos de trabalho poderão ser criados pelo efeito de arrastamento do turismo na produção nacional de bens e serviços. Uma autêntica indústria de cultura poderá desenvolver-se para entreter os milhares que planeiam nos visitar. Assim efectivamente se combaterá a pobreza. Mas para isso, é preciso que a consciência nacional se desloque para a luta, que milhares travam todos os dias por um rendimento digno, e liberte-se da procura ilusória de segurança para todos na função pública.

terça-feira, novembro 28, 2006

Auto-Censura em Cabo Verde

Ontem no Parlamento o Sr. Primeiro-Ministro desferiu ataques directos ao jornal electrónico Liberal e ao Expresso das Ilhas. Pouco antes, o PM tinha-se insurgido contra o que considerou de excesso de conferências de imprensa da oposição. As acusações e os comentários severos do PM não podem ser vistos de ânimo leve. Organizações internacionais que monitorizam o nível da liberdade de imprensa chamam a atenção para a auto-censura em Cabo Verde. A auto-censura emerge quando formas mais ou menos subtis de intimidação coexistem com a possibilidade de ganhos pessoais, em caso de complacência ou cumplicidade de jornalistas. Apesar do n.5 do art. 59 da Constituição garantir a isenção dos órgãos e a independência dos jornalistas no sector público da comunicação perante o Governo, a Administração e demais poderes públicos, o Conselho de Administração, nomeado pelo Governo, interfere pesadamente na prestação do serviço público. Os directores, que deviam ser nomeados só após um parecer do Conselho de Comunicação Social e que, portanto, deviam ter larga autonomia, estão completamente a seu mercê. Na Televisão já se perdeu a conta do número de directores demitidos. Cá fora o quadro não é menos negro. Sectores de opinião, próximos do actual Poder, são aparentemente favorecidos pela a publicidade comprada de principais empresas e instituições do País. Revistas institucionais constituem uma fonte adicional de biscates para os escolhidos porque não é aplicada a proibição de exercício de jornalismo em simultâneo com actividades de publicidade e de relações públicas, prevista na alínea f) do art. 8º do Estatuto do Jornalista. Outras incompatibilidades notórias como as de jornalista/assessor do Governo são ignoradas. O resultado é que há pouco incentivo para se fazer jornalismo a sério. A liberdade de imprensa é, de facto, o que alguns chamam de liberdade-resistência aos poderes públicos. Se as autoridades por via directa ou indirecta e até por invectivas de primeiros-ministros condicionam a liberdade dos jornalistas, não é de estranhar que o País ainda não tenha a comunicação social essencial ao funcionamento pleno do sistema democrático. Uma comunicação social que fomente um diálogo livre, aberto e plural, que dê voz à sociedade civil e que forçe os poderes públicos a cumprir as regras e a respeitar os direitos fundamentais dos cidadãos. Uma comunicação social que, particularmente, seja ciosa da sua própria liberdade. Jornalistas e orgãos de comunicação que neste ambiente lutam por fazer o seu trabalho, com todo o profissionalismo, merecem a consideração de todos. 

segunda-feira, novembro 27, 2006

Expandir o porto da Praia ou construir em Sta.Cruz?

Tudo indica que o Governo vai avançar com o projecto da fábrica de cimento em Santa Cruz. 55 milhões de dólares é o investimento previsto. Para além da fábrica de cimento, um porto terá que ser construído e certamente outras infraestruturas, incluindo estradas adequadas para levar a produção da fábrica ao mercado. Independentemente de se saber se é a opção mais sensata investir numa fábrica de cimento com custos de transporte de matéria-prima de uma ilha para outra e virada para um mercado minúsculo como é o mercado caboverdiano, uma questão se põe: se é imprescindível construir um porto em Santa Cruz, porque não juntar esse projecto ao de expansão do Porto da Praia, que vai custar 59 milhões dólares dos fundos do MCA, numa única infraestrutura portuária que poderá servir globalmente a Ilha de Santiago? O custo extraordinário da expansão do porto da Praia deve-se, segundo os entendidos, às exigências de protecção desse porto que obriga a obras caras em zonas profundas. Isso, aparentemente, sem garantias de que o porto ficará livre da acção do mar que limita a sua operacionalidade em certas épocas do ano. Por outro lado, a expansão do Porto da Praia força ainda mais a concentração da actividade económica na capital com todas as consequências já conhecidas. Um porto em Santa Cruz, servido por uma via rápida, que seria a primeira etapa da via rápida para o Tarrafal, teria um efeito extraordinário na dinamização económica de outras partes da ilha, desconcentrando a Capital e abrindo oportunidades novas, designadamente na imobiliária e no turismo.  

domingo, novembro 26, 2006

O Governo merece a Moção de Censura

A moção de censura ao Governo espelha a indignação geral em relação à atitude do Governo face ao acórdão do Tribunal Constitucional. O Governo falhou no respeito devido ao TC com as patéticas e repetidas referências aos seus experts e com a divulgação da contestação após o caso julgado. Não demonstrou lealdade institucional ao se omitir intencionalmente perante o vazio legal, potencialmente prejudicial aos cidadãos, que resultou do acórdão. O Poder Judicial não tem competência legislativa. O TC simplesmente fez o que estava ao seu alcance: limitou os efeitos da declaração de inconstitucionalidade no que respeita ao ressarcimento dos impostos pagos à mais. Caberia ao governo e ao parlamento impedir outros efeitos. O Governo, ainda, faltou ao seu dever de garante do bem estar das populações e de responsável pela condução sem sobressaltos da economia. Por tudo isso merece ser censurado. Não estão próximas as eleições para que o povo mostre a sua indignação nas urnas. Os Tribunais não podem nem têm como reagir à deslealdade de outros órgãos de soberania. O Parlamento é que é o lugar certo para se escrutinar o comportamento do governo, para o obrigar a se explicar e, se for necessário, para o censurar. Os argumentos avançados pela Porta-Voz do Governo não colhem. O País em termos económicos podia estar na melhor das situações. Não é o caso, como se pode ver pelo nível de desemprego e pelo persistente declínio de Cabo Verde nos níveis de Desenvolvimento Humano. Mesmo que assim fosse, justificar-se-ia a Moção de Censura pela forma como o governo pôs em causa o primado da Lei e a separação de poderes, princípios centrais do Estado de Direito democrático, e pela não assunção pelos governantes da postura de responsabilidade e de maturidade que estão obrigados a demonstrar na condução dos assuntos do Estado 

sexta-feira, novembro 24, 2006

As Leituras do Sr. Primeiro Ministro

Na quarta-feira oGoverno deu posse com muita pompa e circunstância ao 1º Reitor da Universidade de Cabo Verde. Mais uma oportunidade para o Sr. Prmeiro Ministro e o Governo se banharem na luz de mais uma realização, mesmo que seja algo ainda por construir, não obstante os dois anos de trabalho da Comissão Instaladora. Do discurso do Sr. Primeiro Ministro o País ficou a conhecer as suas últimas leituras. Todos esperam que ele digira bem os trabalhos dos autores que citou, Amartya Sen, Francis Fukuyama, Fareed Zakaria e Thomas Friedmnan , apesar de eles se situarem nos antípodas das crenças e das práticas do PAICV. O PM deveria dar especial atenção ao livro de Zakaria para evitar as práticas iliberais que o seu governo é useiro e vezeiro. Vê-se que não assimilou bem “O Futuro da Liberdade” do Zakaria quando na sua leitura da história de Cabo Verde exalta o 5 de Julho que trouxe a Independência mas não trouxe a Liberdade, refere-se à constituição de 1980 que não é realmente uma Constituição mas o texto legitimador de uma tirania, e esquece a Constituição de 1992 que define a II República. O PM não fez qualquer menção à Constituição que estabelece as bases da democracia liberal em que vivemos, que erige o respeito pela dignidade humana como princípio fundamental e que estipula que o Poder só é legitimo se resulta da vontade livremente expressa do povo e se é exercido nos termos da Constituição e das Leis. De facto a inércia da cultura política iliberal do PAICV é demasiado forte. Contamina o pensamento, distorce os discursos e induz a práticas governativas como as verificadas nas últimas semanas.
P.S. O País continua ainda à espera que o Sr. Primeiro-Ministro e o seu Governo deixem de confundir governação com governança. Que façam propaganda das realizações do Governo mas sem cair no ridículo de estarem a apresentar-se como o melhor governo da África e quiçá do Mundo.  

terça-feira, novembro 21, 2006

Governo pune os caboverdianos

O Boletim Oficial trouxe ontem a público o acórdão do Tribunal Constitucional e os novos preços estipulados pela Agência Reguladora, ARE. O aumento de preços previsto pelo Sr. Primeiro-Ministro aconteceu. O Governo cumpriu a sua promessa de punir os caboverdianos. Antes e ao longo da semana passada o Governo e o PAICV, em declarações diversas, vinham desafiando a decisão do TC. No seu modo de funcionamento já previsível, descartaram-se das suas responsabilidades, acusaram o MpD de prejudicar o país e constestaram, mais ou menos veladamente, o acórdão do Tribunal. Chegaram ao ponto de publicar a resposta, que deram ao TC enquanto apreciava o pedido de fiscalização, num sinal de discordância da posição desse tribunal superior, de não acatamento real da sua decisão e de desrespeito pelo seu papel em fixar a jurisprudência constitucional. A omissão do Governo também revela a sua atitude de desafio em relação ao Poder Judicial, ao País e à sua população. O TC simplesmente disse que o Governo não tinha competência para legislar em matéria de impostos. Não disse que os diplomas em termos materiais estavam feridos de inconstitucionalidade. Quer dizer, que, conduzidos ao órgão próprio, o Parlamento, podiam passar a ser lei outra vez, evitando perturbações na vida das pessoas e na economia. O Governo foi notificado da decisão do TC na sexta-feira, dia 10 de Novembro. Tinha tempo suficiente para apresentar na segunda-feira, dia 13, uma proposta de lei que restabelecesse a situação vigente no país em termos de preços. O Parlamento está em sessão desde de 1 de Outubro. O Regimento da A N estabelece que propostas de lei apresentadas em regime de urgência podem ser discutidas 48 horas depois. Isso significa que uma Reunião Plenária do Parlamento na quinta-feira poderia ter aprovado a proposta de lei do Governo e que no Boletim Oficial da segunda feira, teríamos o acórdão do TC e os novos preços, mas sem os aumentos que hoje o país tem que suportar. Se isso não aconteceu foi claramente por vontade expressa do Governo. Talvez para daqui a uma semana aparecer como Salvador e repor os preços anteriores. Um exercício infantil. Por falhar gravemente nas suas responsabilidades e por demonstrar arrogância e imaturidade na condução dos assuntos do Estado, o Governo do Dr. José Maria Neves merecia ser censurado em Sede própria.

sexta-feira, novembro 17, 2006

EDP, estratégia de saída "cut and run"

 Pôr fim ao prejuízo e sair a correr parece ter sido a estratégia da EDP para deixar a sua posição como parceiro de Cabo Verde nos sectores de energia e água. O Primeiro Ministro de Portugal quando passou pelo Sal em Julho último disse que lamentava que "as empresas portuguesas tivessem feito uma negociação, talvez um pouco descuidada", que conduziu à situação então vivida de blackouts na Praia . Tudo indica que a falta de cuidado referida tinha a ver com a promessa da EDP em garantir o investimento de 250 milhões de dólares em 15 anos no domínio da energia e água. A falta de confiança no relacionamento posterior com as autoridades caboverdianas, a quebra nas perspectivas de crescimento do País e a percepção de que barreiras políticas dificilmente permitiriam um tarifário que compensasse os investimentos a serem feitos teriam levado EDP a procurar uma estratégia de saída. A oportunidade para a desencadear foi lhe oferecida pelo Dr. José Maria Neves. O nosso PM tinha um problema na segunda semana de Julho: A população da Praia já não ia na conversa que o culpado pelos blackouts era o MpD. No jogo entre o Governo e a Electra de deitar as culpas um ao outro, o governo estava em vias perder. Com um golpe de cintura, o PM redefiniu a questão e o problema passou a ser entre portugueses da EDP na Electra a prejudicar caboverdianos. A introdução deste factor levou a que Sócrates mandasse um seu ministro a Cabo Verde para, num meio-dia de trabalho, resgatar a empresa portuguesa. E assim aconteceu. Um acordo foi assinado, a EDP ficou livre da promessa de investimento de 180 milhões de dólares e, do já realizado no valor de 70 milhões, levou a garantia de pagamento em vinte anos, na base de mais de mil contos por dia. São esses 70 milhões que agora vende por 40 milhões ao BCA. Preterindo 30 milhões dólares por 40 milhões fresco na mão a EDP estará, provavelmente, a considerar 1- que já é bom que consiga agora 40 milhões por algo que poucos meses atrás dava como potencial perda, 2 – e que, libertando-se da posição de credor da ELECTRA, elimina um possível foco de atrito futuro com a empresa e com o Estado. Para o BCA os ganhos são evidentes: compra por 40 milhões e cobra 70 milhões. Para além disso reforça a sua posição como principal credor do Estado. Cabo Verde é que agora tem que viver com as incertezas, derivadas da falta de garantia de investimento suficiente e atempado na energia e água, com o abalo na confiança que poderá inspirar a qualquer parceiro estratégico e com um risco orçamental acrescido .

quinta-feira, novembro 16, 2006

PAICV e os seus pontos cegos

 Observando o PAICV e o Governo a lidar com a crise política instalada com o acórdão do Supremo Tribunal enquanto Tribunal Constitucional, fica patente os pontos cegos (blind spots) da sua cultura política. Pergunta-se: Porque é que o PAICV insiste em entrar em colisão directa com a Constituição? E em matérias tão óbvias como as que suscitaram os pedidos de fiscalização sucessiva abstracta em 2001, caso de interpretação da alínea q do artigo 175º, e agora de normas constantes do artigo 93º? Como é que depois de perder sucessivamente em dois STJ (2202, 2006) com diferente composição de juízes, mostra-se sempre relutante em aceitar a jurisprudência constitucional fixada pelo tribunal? Porque é que tudo faz para governar sozinho, não obstante a retórica de consensos, mas, quando se vê em dificuldades, culpa outros pelo acontecido ou, então, arrogantemente, desculpa-se dizendo que, se utilizou meios errados, foi para atingir fins nobres? A proposta de Lei do IVA é do Governo, assim como é a proposta de Lei que Regulamenta o IVA. Se normas no regulamento permitiam antecipar situações em que a entrada em vigor do IVA iria pôr em causa a estabilidade dos preços e prejudicar os mais pobres na sociedade, o remédio passaria por negociações entre os grupos parlamentares, como aconteceu para o caso da indústria nacional. O Governo optou por legislar sozinho, pela via de decreto, ignorando o acórdão nº 5/2006 relativo à competência para legislar sobre impostos. Em decretos-leis subsequentes (3/2005 e 63/2005) acabou por violar o princípio da não retroactividade das lei fiscais e o princípio da anualidade. Porquê?! O Sr. Primeiro-Ministro vê-nos dizer que o país vai sofrer! Em vez de, humildemente, mostrar ao país que procura uma solução e, nesse sentido, está a envidar esforços junto à oposição para se encontrar um entendimento sobre a matéria, beligerantemente responde assim: congela a publicação do acórdão, abalando com isso a confiança na Justiça; ataca a oposição por ter colocado o problema; e, de forma surda, contesta a decisão dos tribunais, referindo-se teimosamente aos estudos feitos por experts, nacionais estrangeiros e do FMI. É evidente que o PAICV tem dificuldades em funcionar com regras. Parece que as viola para demonstrar que não se sente amarrado por nenhuma. O PAICV tem um problema com o Poder Judicial. Ë um poder que não consegue combater pela via usual de contestar a motivação dos titulares, ou de acusá-los de representar interesses outros que não os do país ou ainda de lhes atirar as culpas pelo que ainda não se fez ou que pelo que foi feito. Finalmente, para o PAICV o poder absoluto é uma tentação demasiado forte. Por isso a oposição é sempre um estorvo e o País deve-lhe confiança cega porque o seu casamento com os mais profundos interesses do povo, particularmente dos mais pobres, é absolutamente sem mácula. É fundamental para Cabo Verde que o PAICV faça a sua paz com o País, aceite plenamente a Constituição e reconheça as virtualidades do pluralismo na consecução do interesse geral.

terça-feira, novembro 14, 2006

Será que Cabo Verde é uma república de bananas?

A televisão acabou de passar imagens da inauguração de uma nova unidade da Ceris. A placa comemorativa trazia a inscrição que o acto seria presidido pelo Comandante de Brigada Pedro Verona Pires. O Sr. Presidente da República lá fez o descerrar da placa. A questão que imediatamente se põe a todos os caboverdianos é esta : será que temos um militar ou um ex-militar, ostentando patentes militares, a presidir a nossa república democrática? Normalmente, só em repúblicas de bananas, em regimes autoritários sul-americanos, em regimes megalómanos em Africa e em regimes comunistas anacrónicos como Cuba que se vê essa exibição indecorosa de galardões militares na Chefia do Estado. Portugal deu um passo decisivo na sua democracia quando, em 1982, fez a revisão constitucional que acabou com a tutela dos militares no Conselho da Revolução e com a situação anómala do Presidente da República também ser o Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas. O Presidente da República general Ramalho Eanes, passou a ser Presidente Ramalho Eanes. A democracia portuguesa tinha entrado na idade adulta. De facto ninguém fala de Presidente da França general De Gaulle, nem do Presidente dos Estados Unidos general Eisenhower ou do Presidente da Nigéria, general Obasanjo. A subordinação dos militares à autoridade civil é uma questão chave das democracias, tanto pela necessidade de manter o prestígio das Forças Armadas e a confiança na sua missão de defensores, em última instância, da ordem constitucional como, também, de garantir que o monopólio de violência que detém em nome do Estado não se transforme em factor de instabilidade e de caos social. Por isso é que todas as constituições democráticas, incluindo a caboverdiana, proíbem os militares no activo de concorrerem a cargos políticos. Se estão na reserva ou na reforma não faz sentido o uso de patentes militares. Na democracia não há maior honra para um cidadão do que ser Presidente da República. O Sr. Pedro Pires não precisa de outros títulos ou de patentes duvidosos. Em respeito pela Constituição que jurou cumprir e fazer cumprir, não deve permitir que, ao Presidente da República de Cabo Verde, se coloque epítetos manifestamente inconstitucionais.

Políticos, Oposição e o interesse geral

 O acórdão do Tribunal Constitucional de 9/11 declarando a nulidade de decretos-leis do Governo pôs fim a uma verdadeira extorsão fiscal. O Estado tem arrecadado receitas, calcula-se em mais de 427 mil contos por ano, através de impostos ilegitimamente lançados. Este é o custo directo, porque, indirectamente, as pessoas viram-se subtraídas de valores muito superiores, devido ao impacto dos preços de combustíveis, comunicações, água e electricidade sobre os preços de outros produtos. O acórdão resulta de um pedido de fiscalização sucessiva abstracta da constitucionalidade  de Setembro de 2005. O desenlace actual, que acabou com uma situação de injustiça e de prejuízo para todos, foi possível porque a Oposição exerceu o seu papel que é, essencialmente, de limitar o Poder do governo. O Poder na democracia deve ser sempre um Poder limitado. Assim, só é legitimo se se subordinar à Constituição. Os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos devem ser barreiras incontornáveis. A separação de poderes (executivo, legislativo e judicial) impede a emergência de um poder unitário, próprio de regimes totalitários. Neste particular, a Oposição nas democracias parlamentares é o garante da separação de poderes entre o legislativo e o executivo. Uma Oposição activa desencoraja tentações tirânicas da maioria. A compreensão desta dinâmica é fundamental para o desenvolvimento de uma cultura democrática. Tiradas contra os políticos em geral, mas particularmente contra deputados, reflectem muitas vezes a dificuldade em ver a importância do pluralismo na construção do interesse geral. O exercício do contraditório parece ser um desperdício de tempo e de recursos. Provavelmente terá o seu nível de ineficiência. Mas não é nada comparável com a ineficiência de um sistema de poder absoluto ou tirânico. Imaginem quanto custaria a todos se não houvesse um poder judicial independente e uma Constituição democrática para declarar nulos esses três decretos-leis do Governo.

segunda-feira, novembro 13, 2006

Os vencimentos da classe política

É certo e sabido que falar de salários de políticos traz à superfície o que de pior, em termos de falta de razoabilidade, de hipocrisia e de inveja mal disfarçada, existe na sociedade. A posição social dos mais ofendidos nota-se logo pelo argumento preferido para desmerecer qualquer actualização de rendimentos para os titulares de órgãos de soberania. Escudam-se na pobreza existente e atacam acenando com os  problemas dos coitados. Não é possível esconder, porém, a inveja subjacente a esses ataques. A inveja que envenena as relações sociais, que não deixa o mérito ser reconhecido e que bloqueia o espírito de cooperação indispensável para o contínuo enriquecimento material, moral e cultural de uma sociedade. Em Cabo Verde já se convencionou que a vida é um jogo de soma zero. Há um bolo a repartir e se alguém está a servir-se isso significa que diminuiu a parte dos outros. É consequência de uma existência à base de ajuda externa e reforçada no dia-a-dia pela relação perversa entre doadores e recipientes que caracteriza as relações de Poder no País. Normalmente, disfarça-se a inveja mas, quando se trata de políticos, salta logo a matar. O espectáculo de ontem no programa “Noite Ilustrada”é elucidativo a esse respeito. Titulares de órgãos de soberania, políticos e juízes, e titulares de outros órgãos de poder político, presidentes de câmara e vereadores não viram durante nove anos (desde 1997) os seus rendimentos serem actualizados. Porquê? Porque os partidos políticos não chegam a acordo quanto ao mecanismo de actualização dos vencimentos. É forte a tentação de explorar essa questão de forma demagógica e populista. Resultado: a Democracia perde de várias formas, designadamente: 1- No nível de transparência da actividade do Estado. Ninguém acredita que os senhores ministros e presidentes conseguem sustentar-se nos rigores e exigências dos cargos, ano após ano, sem actualização de rendimentos. A falta de actualização é suprida por outras vias: subsídios, ajudas de custo, despesas de representação etc. 2- No enfraquecimento da oposição. Quem está em oposição sofre mais porque não tem os outros expedientes para minorar a persistente perda de poder de compra. Isso torna os membros da oposição vulneráveis a tácticas mais agressivas de quem está no poder com consequentes perdas para a democracia. 3- Na perda de coerência da política de salários na Administração Pública. Altos funcionários têm vencimento superior aos titulares de órgãos de soberania a quem estão subordinados. É o que já está a acontecer, devido ás actualizações anuais no funcionalismo e ao congelamento dos vencimentos de políticos e de magistrados judiciais.

domingo, novembro 12, 2006

NOSI atrás da Microsoft enquanto todos fogem

O apego do NOSI à Microsoft faz confusão. A Microsoft é uma empresa bilionária que vive essencialmente dos direitos resultantes de utilização de Windows, o sistema de operativo de mais ou menos 90% dos computadores no mundo. A Microsoft quando vem a Cabo verde é primeiramente para regularizar a situação do uso do seu software. Assegurar o pagamento de direitos por cada cópia de Windows e do Office em cada computador em Cabo Verde, particularmente nos do Estado. Neste particular, seria interessante saber quanto é que o Estado passou a pagar essa empresa pelos direitos proprietários de uso do software. Calcula-se que seja à volta de 20% o custo dos direitos em cada computador. Isso naturalmente encarece qualquer política de levar um computador a cada família. Por isso é que muitos países, entre os quais Brasil, fogem da Microsoft e promovem vigorosamente softwares livres de direitos. Linux, um sistema operativo mais estável e mais versátil que o Windows, é um exemplo desses softwares livres. No dia de visita a NOSI o Primeiro-Ministro disse que se vai criar todas as condições para que os cidadãos possam ter acesso ao computador, à informação, para que não haja info-exclusão”. Boas intenções. O problema é que o Governo parece não saber como. Por um lado deixa que o NOSI se constitua em obstáculo ao desenvolvimento de um sector privado no domínio das tecnologias de informação e comunicação. Por outro, permite que o NOSI, por si próprio, prossiga caminhos como a construção da plataforma tecnológica da rede do Estado em colaboração com a Microsoft, pondo de parte alternativas tecnologicamente mais sólidas, mais baratas e potencialmente mais enriquecedoras para o País.

NOSI, o darling do Governo?

O NOSI tem sido notícia nos últimos tempos. Em Outubro, durante a visita do Primeiro Ministro o seu presidente lançou o grito de Ipiranga contra o serviço da Cabo Verde Telecom. Declara que já está a ensaiar ligações de Internet via satélite e que o objectivo é banalizar cada vez mais a comunicação e facultá-la a preços baixos e com maior largura de banda. Naturalmente que essa declaração suscita várias questões: Será que o NOSI agora pretende estabelecer-se como provedor dos serviços de Internet? Será que empresas e indivíduos também têm a opção de procurar serviços de provedores estrangeiros via satélite como forma de contornar a Cabo Verde Telecom? Será que essa é a via encontrada pelo Governo – via revolucionária ou de combate – para finalmente pôr de pé as condições para um mercado de telecomunicações mais aberto, mais concorrencial? Até agora ninguém se prestou a responder a essas questões. A confusão persiste porque não se sabe se o NOSI fala e age de motto próprio ou em nome do Governo nessas matérias. Sabe-se é que o NOSI está em tudo e faz tudo. Desde da página de Internet de uma escola secundária no ilha do Sal até assinar protocolos com a Microsoft, passando pela criação, desenvolvimento e gestão de todas as redes de organismos públicos, sejam eles da administração directa, indirecta ou autónoma do Estado, incluindo as autarquias. Muito pouco sobra para os privados. E é uma pena porque muitos países já demonstraram que há um futuro prometedor para um sector privado forte, criativo e inovador no domínio de prestação de serviços da TIC para o exterior, os chamados BPO (business processing operations). Índia, mas também, Gana, nos seus contextos respectivos, são exemplos paradigmáticos da importância que os BPO podem ter na economia e na criação de empregos, principalmente para os mais jovens.

Onde está o moderador do sistema? Onde está o PR?

  Ausente nos dois episódios, em que o Governo fere a Constituição, com consequências gravosas nos rendimentos das famílias e das empresas, tem estado o Sr. Presidente da República. O PR não governa mas tem um papel moderador do sistema político porque antes de mais é o guardião da Constituição. A promulgação de actos legislativos, sejam os decretos- leis do Governo ou as leis da Assembleia Nacional, constitui o momento para o Presidente da República verificar a conformidade constitucional de todo o processo legiferante. Para isso a Constituição dá-lhe vários poderes designadamente de veto, de devolução de diplomas para reapreciação, de enviar mensagens ao parlamento e de pedir ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva da constitucionalidade de qualquer norma. O PR não é um corta-fitas nem um aplicador de assinaturas. Tem poderes reais. Tem que os exercer para o sistema funcione com equilíbrio, para que exista confiança nas instituições democráticas e para que o Estado seja visto por todos, nacionais e estrangeiros, como pessoa de bem.

Os fins não justificam os meios

O primeiro juiz-presidente do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, John Marshall, o pai do judicial review escreveu num acórdão a propósito dos limites do poder de legislar: “Presumindo que os fins pretendidos são legítimos e situam-se dentro do escopo da Constituição, os meios para os atingir são constitucionais se forem os apropriados, os plenamente adaptados aos fins e os que não forem proibidos mas estão em conformidade com a letra e o espírito da Constituição”. Na expressão de John Marshall os fins não podem ser uns quaisquer e fora da Constituição e os meios utilizados devem estar alinhados com os fins numa dialéctica que garante que todo o processo para a consecução dos objectivos definidos é constitucional. Isto vem a propósito de um dos argumentos avançados no acórdão para justificar a limitação dos efeitos da declaração de nulidade dos referidos decretos-leis do Governo. O acórdão refere-se à impraticabilidade da devolução do dinheiro que as famílias e os consumidores entregaram a mais desde de 2003. Fica-se, porém, com a impressão de que vê o efeito da perda das famílias atenuado pelos fins dados às receitas quando diz que “as receitas percebidas ao abrigo dessas normas foram cobradas e certamente empregues em algumas áreas de relevância social”. Isso parece duvidoso. Ninguém pode estar certamente seguro de que as receitas indevidas foram devolvidas à comunidade em serviços e não engolidos nos buracos negros de ineficiência da máquina estatal. 

sábado, novembro 11, 2006

Três pecados contra a Constituição

Ontem o Supremo Tribunal de Justiça enquanto Tribunal Constitucional declarou inconstitucional os decretos leis nº 63/2003, 3/2005 e 63/2003. Considerou de efeito nulo as normas que alteraram a base de incidência do IVA sobre os combustíveis. De facto, a seu bel prazer o Governo vinha alterando, no caso do gasóleo, a base de aplicação dos 15% do IVA de 70% para 100% e, em Outubro de 2005, para 120% do valor das vendas. No caso da gasolina, a variação da base de aplicação do IVA foi de 100% para 320% e finalmente para 420%. Imagine-se o que pessoas e empresas pagaram a mais nestes anos, desde de 2003. É a segunda vez que o Tribunal Constitucional força o Governo a parar o que se pode qualificar de autêntica extorsão em matéria de impostos. A primeira vez foi em 2002 com o acórdão que fixou a jurisprudência constitucional quanto à interpretação da alínea q do artigo 175 da Constituição da República. Neste segundo acórdão o Tribunal Constitucional reafirma a maioria qualificada que pode aprovar alterações de impostos, designadamente a sua base de incidência, e ainda revela as duas outras infracções à Constituição contidas nos decretos leis do Governo: a proibição da retroactividade da lei fiscal e o carácter anual dos impostos. A gravidade disto não pode ser subestimada. O governo não pode continuar a dar aos cidadãos e aos operadores económicos a ideia que é pouco escrupuloso na procura de vias para ter mais receitas. O elemento de confiança entre o Estado, cidadãos e empresas é vital para que o sistema fiscal funcione adequadamente. Sem essa confiança, há o perigo do ambiente no País se degenerar a ponto dos cidadãos se socorrerem do n.3 do artigo 93º da Constituição que diz que "ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não tenham sido criados nos termos da Constituição", para não cumprirem os seus deveres fiscais. O nível de governança num país baixa quando governos fogem às normas, aos processos e aos procedimentos próprios do Estado de Direito e insistem na crença de que os fins justificam os meios.

quinta-feira, novembro 09, 2006

Com que direito fotos de Amílcar Cabral nas repartições do Estado?

Anteontem no Último Jornal da televisão nacional apresentaram imagens de uma entrevista do Sr. Presidente do Instituto das Comunidades. Na parede via-se um grande poster do Amílcar Cabral, no sítio onde, em gabinetes do Estado, normalmente se encontra a fotografia do Presidente da República. Logo de seguida a televisão passou a conferência de imprensa do deputado e vice-presidente do PAICV, Rui Semedo. Também ele estava enquadrado por uma representação artística do Amílcar Cabral. É evidente que o PAICV tem todo o direito de mostrar-se embebido no Amílcar. É uma declaração política, aliás reiterada no Congresso de Outubro onde reivindicou como seu o legado de Amílcar Cabral, ou seja, a sua herança político-ideológica. Com o Instituto das Comunidades o problema é outro. O IC é um instituto público e faz parte integrante da Administração Pública. Os únicos símbolos permitidos nos serviços da administração pública são os representativos da República. E os símbolos da República são os determinados pelo artigo 8º da Constituição: a Bandeira, o Hino e as Armas. O Presidente da República de acordo com o nº 2 do artigo 124º da Constituição representa interna e externamente a República de Cabo Verde. Tem portanto toda a razão de ser as fotografias do PR em tudo o que é Estado. A ética republicana exige que se criem as condições para que a Administração Pública cumpra com o comando constitucional que lhe manda prosseguir o interesse público com imparcialidade. Também a Lei e a Ética exigem respeito para com os funcionários públicos que, por imposição constitucional, devem servir com isenção e imparcialidade todos os utentes, sem qualquer sinal de discriminação partidária. Para todo o País ficou claro no congresso de Outubro que o  PAICV, o partido no Governo, quer manter partidarizada a figura de Amílcar Cabral. Muito bem. A coerência, a ética e o respeito pela Constituição impõem que o Governo, enquanto órgão superior da Administração Pública, mande retirar as fotografias de Amílcar Cabral de todas as repartições e gabinetes de organismos do Estado, tanto no País como nas Missões no estrangeiro.  

quarta-feira, novembro 08, 2006

Justifica-se o embargo dos produtos de S.Antão?

Sem chuvas suficientes os problemas de S. Antão e das suas gentes agudizam-se. Os presidentes das câmaras, Amadeu Cruz e Orlando Delgado, hoje no noticiário da uma hora, apelam à criação de postos de trabalho público. Emprego público é sempre um paliativo temporário. Importa, porém, encontrar soluções com efeitos duradoiros e sustentáveis. Um óbvio caminho para isso é pôr fim ao embargo de produtos de S.Antão nos mercados do Sal e da Boavista cujo potencial de dinâmica e expansão está à vista de todos. De facto pergunta-se porque que não há produtos agrícolas de S.Antão no Sal e na Boavista. Aliás nem produtos de S.Vicente são permitidos, designadamente flores, um produto de grande valor acrescentado. Dizem que é por causa dos mil pés. Ora, mais de duas décadas depois, parece que, ainda, a única resposta à praga é procurar confina-la a S.Antão e S.Vicente, sem analisar os custos e benefícios dessa medida. Há algumas questões que devem ser colocadas, designadamente: Qual é de facto o impacto dos mil pés no potencial agrícola de S.Antão e como isso evoluiu ao longo dos anos ? Alguma vez se fez um estudo para determinar qual o impacto que teria nas outras ilhas, considerando as suas preferências por ambientes muito húmidos? Será que Sal e Boavista seriam um natural habitat para os mil pés? Essas duas ilhas têm uma economia agrícola que entraria em colapso se fossem para aí transportados? Estas e outras questões precisam de respostas urgentes. Porque não basta investir ou disponibilizar meios para a produção. É preciso identificar e desenvolver mercados. É preciso eliminar os custos desnecessários de acesso aos mercados em todo o território nacional. É preciso abrir vias para o acesso de produtos e serviços nacionais ao mercado flutuante criado pelo crescente fluxo turístico. Sem isso, ficaremos com a situação de enterrar milhões nas ilhas e, ao mesmo tempo, continuar a ver as populações a viver as mesmas situações dramáticas de há décadas atrás. Os presidentes das câmaras de S Antão e S.Vicente deviam tomar a iniciativa de desencadear um processo de revisão das razões do embargo.

terça-feira, novembro 07, 2006

Regulação precisa-se III

 A regulação só funciona se as entidades que cuidam da sua aplicação demonstram isenção e imparcialidade na sua actuação. A Constituição da República prevê a existência de entidades administrativas independentes precisamente para garantir que a regulação fique independente dos desejos e necessidades políticas conjunturais do governo. A actividade de regulação deve portanto concentrar-se em soluções que tenham em devida linha de conta os interesses dos consumidores, os interesses das empresas reguladas, a manutenção de ambiente de concorrência no país e o incentivo à inovação no sector regulado. O Ministério Público, enquanto órgão constitucional de defesa da legalidade, tem a autonomia necessária para velar que a lei seja válida para todos. O caso Pulú e da sua televisão é algo que chama atenção por várias razões. Uma delas é a acção judicial, que lhe foi movido pelo Ministério Público, na sequência de uma denúncia da Direcção Geral de Comunicação Social, por transmissão não autorizada de televisão em sinal aberto. Era um facto conhecido de todos em S.Vicente, mas também em todo o Cabo Verde. Assim como são conhecidas as transmissões, em sinal aberto,  por emissores instalados e sustentados pelas câmaras municipais e pela TV Record, propriedade da Igreja Universal do Reino de Deus. São tão conhecidas essas transmissões que a inauguração dos emissores passaram a ser material de campanha política poderosa, utilizada por todos, a começar pelo próprio primeiro-ministro. O que parece estranho é que o Ministério Público perante uma denúncia de ilegalidade não haja de forma compreensiva e abrangente pondo cobro a todas as ilegalidades flagrantes, a começar pelas câmaras e igrejas que financiam emissões de televisão. Isso sem referir a conteúdos das transmissões que põem em causa acordos internacionais, assinados por Cabo Verde, quanto à protecção de conteúdos e ao respeito pela propriedade intelectual. Destrói-se qualquer possibilidade de se criar um ambiente favorável à regulação se se deixar passar a ideia de que o Governo ou uma direcção da administração do estado, por denúncia dirigida, pode transformar alguém, indivíduo ou empresa, em alvo de retaliação política ou outra.

Regulação precisa-se II

 Cabo Verde hoje não tem um cinema a funcionar. Deve ser um caso único no mundo em que as pessoas não conseguem viver a experiência completa do cinema no que tem de arte, de lúdico e de entretenimento. Estão limitadas ao pequeno ecran e constrangidas pela formatação do filme aos requisitos da televisão. Para além das razões históricas próprias da natureza do regime de partido único que levaram o então Instituto do Cinema a sufocar os proprietários das salas de cinema de Cabo Verde, a morte delas, depois de uma breve ressurreição, deve-se, em grande medida, á completa anarquia existente no mercado do entretenimento. A pirataria reina. A pirataria afecta o mercado da música, afecta o mercado do vídeo e afecta o mercado do software. Tudo isso com efeitos extraordinariamente nefastos na economia do país. Mas quem concorre para isso? O principal culpado é o Estado que não cumpre com o seu papel de regulador. As salas de cinema fecharam porque não conseguem concorrer com as cópias piratas postas a circular logo após o lançamento dos filmes nos principais mercados da América, da Europa e da Ásia. A televisão estatal caboverdiana também para isso concorre com a passagem ilegal de filmes, muitas vezes, duplamente ilegal: ilegal porque não pagou os direitos e ilegal porque usa cópia pirata sem ainda a sua edição em DVD. A passagem recente do filme Código da Vinci é um exemplo flagrante deste despropósito.